Cresce, a cada dia, minha inquietação com algumas expressões da cristandade ocidental. Noto, por um lado, uma piedade desencarnada, sem relevância diante da vida, destituída de racionalidade e pobre de bom senso. Percebo, por outro lado, uma espiritualidade cheia de boa vontade, recheada de “profetismos” e indignações, mas impotente e que pouco contribui na construção da história. Minhas intuições mais primitivas me mostram algumas coisas. Antes! De antemão, já sei que estou perdendo uma grande parcela de pensadores cristãos que não valorizam as intuições no exercício teológico. Tudo bem. Adianto apenas que, ao falar de intuição, valho-me de meu berço pentecostal que me autoriza a também pensar com as entranhas. Vamos aos meus “insights”: 1. Sugiro que se considere o livro de Eclesiastes como um dos principais eixos hermenêuticos para se compreender a Bíblia. Ele precisa ser levado mais a sério. Enquanto os evangélicos não tiverem coragem para encarar a vida com suas contingências, aleatorieades, e com o porvir em aberto, não tem jeito, eles permanecerão de mãos atadas para transformar a realidade. O pretenso axioma de que o fim da história já está pronto, levará, por mais que se diga que não, a um fatalismo. Ora, se a história segue por trilhos que a Providência estabeleceu antes da fundação do mundo, mesmo que cruzemos os braços (postura que só nos traria prejuízo, aquiesço) ela chegará ao seu destino sem depender de nós. Esta compreensão, mesmo que sutilíssima, gera inoperância. Qual o futuro do Brasil? Se ele já estiver pronto, se já for conhecido plenamente, (não como possibilidade, mas como realidade) aqueles que não cooperarem, só perderão a oportunidade de serem participantes, porque o Brasil se transformará no que tiver de ser. Claro que existe um certo conforto em pensar no futuro como algo já determinado, e essa acomodação estanca a verve transformadora. 2. Percebo que alguns têm medo de rever seus conceitos de soberania divina; apavoram-se com a possibilidade de estarem diminuindo suas convicções teológicas e sentimentais sobre a onipotência divina. Nada mais próximo do sacrilégio, para alguns. Esses, sem conseguirem criticar a compreensão do senso comum sobre soberania divina, repetem que tudo está sob o controle absoluto de Deus e que nada acontece sem que ele tenha um propósito. Assim, estabelecem como verdade, mesmo sem perceberem, que todos os mínimos detalhes e todos os acontecimentos e desdobramentos do que existe é parte de um plano cósmico. Favelas? Desgraças mundiais? Terrorismo? Estupros? Tudo, absolutamente tudo, afirmam resolutos, faz parte da vontade de Deus e redundará em glória para o seu nome. Eu, porém, atrevo-me a dizer outras coisas sobre o assunto. Acredito que nem tudo o que acontece foi previsto, antecipado ou participa de uma intrincada engrenagem celestial. Na minha opinião, a injusta distribuição da riqueza mundial, os gastos exorbitantes com armas e bombas, a cultura do acúmulo, do desperdício e do consumismo e até o moderno mito do progresso que destrói os ecossistemas, não têm nada a ver com Deus. Ele não pode pagar a conta do nosso egoísmo, da nossa perversidade e da nossa indiferença. A não ser que os evangélicos abandonem seus pressupostos deterministas da história, a ação cristã permanecerá à margem dos verdadeiros processos de mudança da realidade. 3. Noto que a doutrina da salvação (soteriologia) cristã joga para depois da morte, o processo que deveria salvar as pessoas para dentro da história. Cristo não salva apenas para garantir um "pós-sepultura" de alegrias perenes. Ele deseja que seus discípulos experimentem, no quotidiano, uma qualidade de vida já contaminada de eternidade. A alvissareira mensagem evangélica anuncia que não basta salvar indivíduos de si mesmos, eles precisam ser salvos para o próximo; não basta salvar indivíduos do diabo, eles precisam ser salvos para não demonizarem suas relações sociais; não basta salvar os indivíduos do mundo, eles precisam ser salvos para voltar ao mundo e salgá-lo. Enquanto não se criar coragem para repensar alguns pressupostos aceitos como dogmas e sem reflexão crítica, os cristãos continuarão se indignando com a morte de crianças, continuarão engrossando o coro dos revoltados, continuarão esmurrando mesas sagradas, mas pouco contribuirão para mudar a existência. Religião só tem sentido quando afirma que o mundo não está do jeito que deveria; e o verdadeiro cristão precisa querer mudá-lo. Quem se atreve? Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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