Carta a um amigo, e a todos os amigos na mesma situação:
O desejo da carne, da alma, do instinto, do sexo, da vaidade, da soberba da conquista — tem em si a força da eternidade; pois, por tais coisas o homem troca paz, alegria, sossego, amores estáveis e de sempre... -; por um repasto; por um surto de poder; por um acesso de “fome” de barriga cheia; por uma história para contar; por uma transgressão a prezar; por um caso excitante a esconder; por um poder a ostentar; por “segurança” financeira; por um rosto belo e um corpo novo e sedutor; por um círculo importante de “novos amigos”; enfim, pela soberba da vida.
Entretanto, todas essas coisas só são problemas quando para a pessoa que sofre a eterna-dor-do-momento, o problema é para ele a solução!
Eu já estive neste lugar de tentação no qual a alma não aceita negação como resposta, e inventa álibis para justificar sua determinação de abraçar o momento como eternidade — os álibis pelos quais chorará o resto da vida, arrependida de tê-los inventado como auto-engano.
Ora, a pessoa que vive tal estado não ouve, não vê, não escuta; ou, se ouve, vê, e escuta, todavia, nega-se a ouvir o que lhe chega aos ouvidos, e nega-se a ver o que lhe pintam ante os olhos como lucidez, e repudia qualquer voz que lhe peça escuta na alma.
Trata-se de um surto. Sim! Da forma mais comum de surto, que é aquela que se faz acompanhar de paixão pela paixão, de tesão pelo tesão, e de um direito de sentir-provar-tudo que equivale ao dos reis nababos.
E quem dirá “não” a esse “louco senhor” de sua própria desgraça?
Pais, cônjuge, filhos, amigos, e a própria consciência da fé, em tal caso, tornam-se impotentes ante a avalanche dos desejos que escorrem dos Himalaias da alma, e alagam os vales da razão, e entopem todos os canais da lucidez, e que ficam cheios de entulhos... — os quais deixaram o antes lúcido homem em estado de sepultamento sob os escombros de seus próprios enganos e agonias.
Todavia, tal coisa é como no mito:
A Psique só é bela se não for vista; pois, do contrário, seu rosto se transmuda para a pessoa que o ilumina a fim de vê-lo de perto; e, assim, tal pessoa (a que olha a Psique bem de perto) deixa de ver sua própria imaginação projetada no resto da Psique; pois, ao vê-la sem a magia da noite, do mistério e do encanto, o que sobra é a realidade.
Nada há mais letal para uma paixão do que vivê-la; e nada há mais letal para o amor do que tentar vivê-lo como se ele fosse uma paixão.
Uma paixão “vivida” (experimentada em todos os sentidos) faz do objeto do desejo alguém que rapidamente tornar-se-á um “ser mortal”; como todos os demais; e isso para a dor daquele que se deita na cama da Psique com a luz acesa, e vê que ela é apenas mais uma ela...
Dê-lhe algumas noites na luz; e dê-lhe algumas contas para pagar à luz do sol —; e você verá que Psique é burra, inoperante, desligada, irresponsável e abusiva... Afinal, você é o escravo; você é o louco que deixou tudo por ela; e você é também o responsável por vê-la bela para sempre. Se ela ficar feia, saiba: ela lhe dirá: A culpa é sua!
Alguns vão, quebram a cara e não voltam. Outros vão, quebram a cara, e tombam. Outros vão, quebram a cara e voltam. Alguns encontram alguém esperando na volta. Outros não... Então, a antiga paixão é chorada como a pior dor do coração; e que vem a ser com muita propriedade chamada de “dês-ilusão”.
O pior de tudo é que o tal “surtado” sempre pensa, antes de tudo, que dará jeito até naquilo para o que Deus diz que não tem solução passível de felicidade.
Paixão, no seu surto, quando se associa à transgressão, à traição ou mesmo ao abandono, sempre crê que todos os impossíveis, dessa vez, serão possíveis.
Sim! A pessoa crê que uma nova era está sendo inaugurada pela sua paixão disfarçada de amor feito de desejos incontrolável.
Ora, não foi assim com ninguém desde o Éden, mas a pessoa pensa que o mundo está re-começando com ela.
Assim, ela crê que “Adão” e “Lilith” (mítico), Sansão e Dalila, Davi e Bate-seba, Marco Antônio e Cleópatra, Abelardo e Eloíse (e quem mais tenha sofrido pelo surto das paixões), eram todos uns otários; pois, dessa vez será diferente.
E, assim, mais uma vez pergunto:
E quem dirá “não” a esse “louco senhor” de sua própria desgraça?
Cada um é tentado pela sua própria cobiça, a qual é sempre um misto de instinto com insegurança. Assim, quanto mais inseguro acerca do sentido da vida se está, mais a pessoa dá asas á fantasia da alma; e nunca faz a viagem sem voltar com uma musa (ou muso) inventada nos porões da alma, ainda não iluminados pela luz da realidade e da proximidade.
No fim a pessoa vê (às vezes já tarde demais) que tudo o que ela dizia ser essencial, nada mais foi do que uma fome criada pelo instinto do inseguro; o qual, agora, depois de ter feito tudo quanto disse que tinha o significado de uma eternidade de importâncias, nada mais foi que um fugaz desejo de possuir; e apenas porque individuo não sente que possui a si mesmo; e, pior ainda: não gosta de si mesmo!
Estou escrevendo isto por amor a um amigo entrando em tal estado de surto; e, de cujo estado, vi muito pouca gente sair feliz; pois, os que saíram felizes, assim saíram apenas em razão das bem-aventuradas dores do arrependimento.
Nele, que ama, mas deixa o filho ir conhecer a terra distante, na esperança de que volte ainda com vida,
Caio
07/07/07
Lago Norte
Brasília
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